#NemTudoÉPacote

A saúde suplementar brasileira atravessa um ciclo de racionalização administrativa com forte impacto sobre a assistência médica. Nesse cenário, os pacotes hospitalares surgem como instrumento regulatório e financeiro que visa conter custos, aumentar previsibilidade orçamentária e mitigar desperdícios. Essa forma de remuneração — que fixa um valor pré-determinado para um procedimento ou grupo de procedimentos (com base nos códigos TUSS) — foi criada como resposta à inflação médica e ao modelo tradicional fee-for-service, historicamente associado à fragmentação e incentivos perversos ao volume, e não ao valor.

Segundo dados da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), o índice de variação dos custos médicos hospitalares (VCMH) tem superado sistematicamente a inflação oficial medida pelo IPCA, chegando a até 20% ao ano em certos períodos, impulsionado por inovações tecnológicas, judicialização da saúde, envelhecimento populacional e aumento da sinistralidade. Nesse contexto, os pacotes surgem como mecanismo racionalizador.

Vantagens dos pacotes hospitalares:

  • Maior previsibilidade financeira para operadoras e hospitais.

  • Redução do ciclo de faturamento, com menor disputa de glosas.

  • Padronização de condutas clínicas baseadas em diretrizes.

  • Estímulo à eficiência operacional, especialmente em hospitais com governança clínica madura.

Contudo, é necessário afirmar com clareza: nem tudo na medicina cabe em um pacote.

A aplicação irrestrita de pacotes ignora a complexidade clínica e a variabilidade dos casos reais. Um procedimento descrito por um único código TUSS, como a reconstrução ligamentar do joelho (TUSS 307337073), não contempla variações clínicas como:

  • Lesão associada do menisco em alça de balde.

  • Necessidade de tratamento simultâneo de cartilagem.

  • Pacientes com comorbidades ou complicações intraoperatórias.

  • Uso de OPMEs diferenciadas que não se enquadram no valor fixado.

Essa limitação compromete a autonomia médica, pressiona os profissionais a ajustarem suas decisões à lógica econômica do pacote e, mais grave, pode comprometer a segurança e o desfecho clínico do paciente.

Os hospitais, diante dessa realidade, ficam divididos entre:

  • Assumir prejuízos financeiros em casos que ultrapassam o escopo do pacote.

  • Ou negar-se a realizar procedimentos complexos, com risco de desassistência.

Médicos, por sua vez, são pressionados a:

  • Reduzir tempo de internação independentemente da recuperação do paciente.

  • Escolher OPMEs menos custosas mesmo quando não são ideais.

  • Evitar a realização de atos técnicos não previstos no escopo do pacote.

Essa tensão compromete o princípio da integralidade do cuidado e ameaça um dos pilares da assistência ética: o paciente deve ser o centro de toda decisão em saúde.

Como mostra o estudo técnico do IESS (Instituto de Estudos de Saúde Suplementar), publicado em 2022, a adoção cega de modelos de pagamento prospectivos sem mecanismos de flexibilização pode gerar subtratamento e queda na qualidade assistencial, especialmente quando os desfechos clínicos não são monitorados ou incentivados.

É preciso reconhecer que os pacotes são ferramentas úteis. Mas são ferramentas. E como toda ferramenta, precisam de critérios, exceções e inteligência.

Por isso, afirmamos:

  1. Pacotes hospitalares devem ter mecanismos de exceção clínica baseados em critérios técnicos, revisados por juntas médicas independentes.

  2. Casos complexos devem ser analisados fora da lógica padronizada. A padronização serve ao fluxo, mas não à singularidade da dor.

  3. Hospitais precisam de segurança jurídica e contratual para atender além do escopo básico quando for necessário.

  4. A remuneração baseada em valor deve considerar não apenas o custo, mas os desfechos clínicos, a experiência do paciente e a equidade.

Conclusão

A medicina não é uma indústria de montagem. É um campo de decisões críticas, humanas, técnicas e éticas. Ignorar essa premissa transforma o cuidado em produto e o paciente em custo.

#NemTudoÉPacote é mais do que uma hashtag. É um chamado à razão, à empatia e à ciência.

Para a maioria dos casos, o pacote pode ser funcional.
Para os casos excepcionais, ele é injusto.
E a injustiça em saúde se traduz em sofrimento, sequelas e vidas perdidas.

Atenção regulatória não é apenas contábil — é também moral.

Leonardo Addeo RamosComentário