Pacotes hospitalares, pertinência cirúrgica e o desafio dos casos complexos: uma análise crítica.

Os pacotes hospitalares surgiram como uma estratégia de gestão para controlar os custos assistenciais, padronizar condutas e simplificar a relação contratual entre hospitais e operadoras. No cenário da saúde suplementar brasileira, eles se consolidaram como um modelo amplamente utilizado, especialmente em procedimentos eletivos com grande volume e baixa variabilidade técnica. No entanto, quando se trata de casos complexos, essa ferramenta, inicialmente concebida para dar previsibilidade e eficiência ao sistema, pode se transformar em um obstáculo ao cuidado centrado no paciente.

A questão central reside no desalinhamento entre a padronização proposta pelos pacotes e a variabilidade clínica real. Muitos pacientes apresentam condições que extrapolam o escopo do procedimento principal — como lesões associadas, uso de órteses ou próteses especiais (OPMEs), intercorrências clínicas ou necessidade de abordagens técnicas mais sofisticadas. Quando esses casos são obrigados a se encaixar em pacotes rígidos, o resultado é frequentemente uma limitação da autonomia médica, atrasos terapêuticos e, em última instância, piora dos desfechos clínicos. Esse descompasso compromete a efetividade do cuidado, o que é paradoxal, já que um dos objetivos centrais dos pacotes é justamente promover valor em saúde.

A literatura é clara ao mostrar que atrasos na realização de procedimentos cirúrgicos eletivos — mesmo aqueles classificados como de “baixa urgência” — podem acarretar consequências clínicas relevantes. Dados de levantamentos nacionais e internacionais demonstram que a postergação de cirurgias além de três a seis meses está associada a maior risco de complicações, dor persistente, perda funcional e até mesmo aumento da mortalidade em certos grupos de pacientes, como idosos com fraturas do quadril. Além do sofrimento individual, há um impacto econômico direto sobre o sistema, que acaba arcando com custos maiores em função de internações repetidas, uso ampliado de medicamentos, reoperações ou judicializações. Em estudo publicado no RBM, por exemplo, observou-se que a espera prolongada para cirurgia ortopédica elevava em mais de 20% o custo total da internação, além de comprometer o retorno funcional do paciente ao trabalho e à vida social.

Nesse contexto, é fundamental abordar a questão da pertinência cirúrgica com rigor técnico. A indicação de um procedimento deve ser fundamentada em evidências clínicas sólidas, mas também deve respeitar as particularidades de cada caso. Quando um modelo de remuneração desconsidera essas nuances, ele deixa de ser custo-efetivo. A verdadeira racionalização de recursos não se dá por exclusão de condutas, mas sim por escolhas técnicas bem embasadas que visam o melhor desfecho possível com o menor custo global. O foco deve estar na resolutividade: tratar adequadamente desde o início, com os recursos necessários, pode evitar múltiplas internações e tratamentos fragmentados que oneram ainda mais o sistema.

Um exemplo ilustrativo vem de centros especializados em cirurgias de alta complexidade, como as lesões multiligamentares do joelho. Em minha prática clínica, realizamos com frequência esse tipo de procedimento, envolvendo múltiplas estruturas e demandas técnicas elevadas. Com equipe treinada e protocolos bem estabelecidos, conseguimos realizar essas cirurgias em uma única internação, garantindo reabilitação precoce e retorno funcional satisfatório. Contudo, o modelo de pacotes nos obriga muitas vezes a fragmentar esse tratamento em duas ou três etapas, não por critério clínico, mas por limitação contratual. Isso não apenas compromete o cuidado, como também desvaloriza o esforço de equipes que buscam eficiência real — a que resolve o problema de forma definitiva e com segurança.

É imprescindível reconhecer que os pacotes, embora úteis para a maioria dos casos simples e previsíveis, não se aplicam universalmente. Estudos apontam que entre 10% a 15% dos procedimentos cirúrgicos não se encaixam nas condições padronizadas previstas pelos pacotes — número que pode ser ainda maior em especialidades como ortopedia, oncologia ou cirurgia cardiovascular, onde a variabilidade é intrínseca ao ato médico. Para esses casos, o sistema deve prever critérios técnicos de exceção bem definidos, com fluxos claros de autorização e auditoria fundamentada em parâmetros clínicos e desfechos.

Ademais, é necessário que hospitais e operadoras desenvolvam mecanismos colaborativos, em que a justificativa clínica baseada em evidência permita a ampliação ou flexibilização do pacote sem penalizar os prestadores ou gerar glosas arbitrárias. A maturidade contratual passa por reconhecer que cuidar bem de um paciente complexo, em menos tempo e com menos risco, é mais custo-efetivo do que postergar ou simplificar a assistência em nome de um equilíbrio financeiro artificial.

Em última instância, defender o uso racional de recursos não deve ser sinônimo de contenção indiscriminada. Racionalidade implica analisar com profundidade a relação entre custo e benefício, risco e segurança, qualidade e eficiência. Significa reconhecer que o cuidado centrado no paciente exige personalização, e não padronização absoluta. Significa, sobretudo, entender que o valor em saúde só é entregue quando há desfecho clínico positivo, com o menor impacto possível para o paciente e para o sistema.

Portanto, se queremos um modelo sustentável, ético e moderno, é necessário sair da dicotomia entre “pagar menos” e “tratar mais” e caminhar para um modelo que valorize o desfecho clínico e respeite a complexidade dos casos. Pacotes devem existir, sim, mas com espaço para a clínica, para o bom senso e para a medicina baseada em evidências. O desafio está posto: promover eficiência sem abandonar a essência do cuidado.